paixão 13, mundo cá dentro
-Há já algum tempo. Tenho estado em pausa...
-Em pausa?...
-Sim. Pausa. Sinto que tenho a vida em pausa... Carreguei não sei quando nem como no botão que tem os dois tracinhos, aquele que fica ao lado do Play... E fiquei com a vida em pausa. Parece que estou à espera de algo que não chega. E entretanto os dias passam gastando-me o tempo... E eu com a vida em pausa...
Já tanto passou desde que passei aquele fim de semana naquela longínqua vila alentejana. A minha mãe levou-me no carro de um casal amigo. Quer dizer, eles levaram-nos aos dois, claro. Fomos desanuviar da cidade num fim de semana prolongado como se nunca tivéssemos saído para lado nenhum, e no entanto éramos os da cidade, as pessoas da capital, mas a minha humildade apenas via pelos meus olhos a beleza da simplicidade que era aquela vida. Éramos os da cidade, mas era essa cidade naquele momento tão pequenina diante daquelas paisagens, de toda a novidade, de todos os cheiros novos que me abraçavam as narinas. Descobri que até o calor tinha um novo cheiro. Um cheiro doce, um cheiro a terra quente e ervas. Os cheiros fluiam e misturavam-se numa açorda de prazer olfactivo.
Parámos primeiro em Reguengos. O Carlos apresentou-nos familiares. Cerimónia do costume. Conversa singela. Nada de mais. Mais família, mais apresentações. A sala pequena demais para a minha timidez. Quase de saída, finalmente. Entra novo elemento da família que ninguém havia dito existir: cabelo preto e pouco mais recordo. A não ser o sorriso, claro. Dei por mim de joelhos cá dentro de mim. Não dei parte fraca por fora, claro, mas por dentro qualquer coisa cedeu e caí de joelhos. E logo a seguir a tristeza irrompeu. Seria a primeira e última vez que a veria. Nós iríamos seguir para outra vila. Naquele momento não desejei conhecer mais nada, não me apeteceu sair dali, nem me fazer à estrada para finalmente ir conhecer a famosa vila que me haviam apregoado maravilhas. Não, não, não... Eu fico já aqui. Porque não podemos ficar por aqui, afinal?
Os doze, treze ou catorze anos que teria então, pareciam bem menos face à birra que fiz dentro de mim naquele momento. Alguém disse que iríamos ficar na terra do Carlos. Do primo Carlos, para ela. Ficou no ar a possibilidade de uma visita. Ela sorriu-me e os meus olhos sorriram em gargalhadas redondas pela paixão que senti.
Partimos.
As coisas novas sucederam-se num mar de sensações que nunca esqueci. As ruas, as casas, o cheiro da cal nas paredes ao fim da tarde. Os sons dos pássaros omnipresentes. O fresco da casa lá dentro deixando o calor prisioneiro lá fora. O jantar, os sabores, a simplicidade, a açorda que nunca havia provado, não uma açorda daquelas. E se eu já gostava de açorda...
Passeámos ao serão pela vila. A pé, claro, para prolongar o passeio e moer o jantar. Café no maior café da vila como manda a tradição para visitantes. Pareceu-me bem apresentável, mas naquela altura a exigência da idade era baixa, daí que hoje não posso dizer nada.
Já não me recordo bem da primeira noite. Quarto no primeiro piso, misto de sótão e acesso ao terraço que dava para alguns telhados e para uma vista expandida até lá bem ao longe.
Do pequeno almoço não há memória, mas não esqueci nesse mesmo dia o passeio pelo lago - barco de borracha, remos enormes de plástico azul e amarelo. O lago sereno salpicado de cabeças de cágados curiosos, o chapinhar dos remos na água quebrando o silêncio do calor, a vontade de saltar para a água... Morri naquele momento e ali fiquei para renascer minutos depois.
Chegámos a casa. Subimos ao sótão. Eu e a minha mãe. Trocámos de roupa se não estou em erro. Ou pelo menos ela, que sempre foi mais dada a essas coisas. As crianças querem lá saber disso. Só quando as obrigam.
Desci. O meu coração parou durante os dois segundos e meio em que a adrenalina se espalhou pelo meu corpo e em que a felicidade se concentrou na garganta na forma de um grito mudo. Ela tinha chegado.
Sorrimos no primeiro olhar. Tentei agir naturalmente. Com alguma distância, até. Defesas...
-Sempre vieste?
-Sim, - disse ela continuando a sorrir - quis vir...
Nesse momento soube que tinha vindo por mim.
Ainda no dia anterior tinha pensado que nunca mais a veria e agora, ali estava ela, à minha frente.
Passámos o resto da tarde entre o terraço e a parte do sótão que lhe dava acesso. Conversámos. Desconversámos. Sorrimos. Rimos. Brincámos. Deitei a cabeça no seu colo e ali fiquei. Senti o seu calor e senti-me completo naquele momento.
A cumplicidade das horas foi-se acumulando nos nossos gestos, nas nossas palavras, no nosso silêncio... E a paixão que senti, era uma maré em ondas consecutivas, uma maré de um mar de sentimentos, porque o verdadeiro mar, esse, estava agora muito longe.
A noite chegou. E de parte do serão pouco recordo, a não ser uma visita a familiares a meia dúzia de casas de distância. O resto do serão, esse, revelou-se na concretização do meu desejo mais profundo. Um desejo simples. O desejo de um rapaz ainda criança, apaixonado pelos sentimentos de descoberta. Um rapaz criança apaixonado pela primeira vez assim de igual para igual, frente a frente, olhos nos olhos, sorriso no sorriso.
Não sei como aconteceu, mas todos desapareceram. Conversas de adultos talvez, deixando-nos aos dois na sala de televisão, esta ligada, eu e ela, deitados no chão fresco, luz apagada, almofada atrás da cabeça, assistindo a um documentário sobre o reino animal numa estação de televisão espanhola. O locutor, num castelhano acessível referiu que os animais dos quais falavam - não me recordo agora quais, - se tornavam ferozes já não sei porquê. Eu, ouvindo aquilo, no meu instinto de palhaço ainda em desenvolvimento, mas já activo, comecei-me a afastar-me dela muito devagar levando a almofada comigo num rastejar sereno. Ela olhou para mim intrigada. Eu, já com uma distância de segurança, disse num esgar de troça contendo um sorriso denunciado:
-Ainda bem que avisaram que são perigosos...
Ela parou franzindo o sobrolho num breve instante percebendo que eu a estava a compará-la aos animais da tv. A boca abriu-se-lhe num ah! mudo e avançou para mim. Os risos irromperam num momento feliz e cúmplice. Tínhamos a capacidade de brincar daquela forma. Ela bateu-me com a almofada. Eu protegi-me como pude. Numa fracção de tempo ficámos mais próximos do que quando estávamos deitados lado a lado. Olhámos um para o outro e os lábios tocaram-se. A magia do primeiro beijo que se dá a alguém é infinita...
Ficámos o resto do tempo deitados lado a lado. Corações em sobressalto. Televisão espanhola no ar. A sua cabeça na fronteira entre o meu ombro e o meu peito. O meu braço a envolvê-la.
Fomos namorados naquele momento. Talvez mais. Um namoro fictício que se começou a desfazer quando uma trovoada de verão irrompeu na tarde do dia seguinte e me fez recordar que o regresso estaria para breve. O cheiro da chuva sentido do terraço olhando para o longe e o som dos trovões cada vez mais perto fizeram-me sentir a vida com os sentidos e as emoções como até hoje não esqueci, porque tudo o que é importante não se esquece.
Voltámos na manhã seguinte. Uma viagem que também não esqueci. Agora que me lembro, parece-me que a viagem foi toda ela uma única planície ondulante a perder de vista, uma única estrada que desembocou directamente na Rua Ferreira Borges do meu bairro. Como se tivesse uma planície tremenda logo ali ao virar da esquina como quem vira para as Amoreiras. Descobri anos mais tarde, que sim, que onde quer que esteja, tenho sempre, já ali, uma estrada, uma planície, uma trovoada de verão, cheiros e cores... E também a felicidade de um reencontro seguida pela tristeza de uma despedida...
É este o mundo que trago dentro de mim.