Cinemas Lusomundo
Estava ontem a jantar com o trolha junior quando vi esquecidos em cima da mesa, dois vales de cinema que lhe arranjaram, válidos apenas nos cinema Lusomundo.
Agarrei nos vales e confirmei que, de facto, apenas eram válidos nos cinema Lusomundo até trinta de novembro do corrente.
-Oh, pai!...
-Pai, não! Então? - Interrompi eu. - Mestre trolha, se faz favor!
Todo o homem pode ser pai, agora Mestre trolha... Ainda para mais tendo já um aprendiz.
-Diz lá, rapaz! O que ias a dizer?
-Oh... Mestre?!...
-Muito bem. Continua.
-Aquele cinema ao pé da casa da avó é da Lusomundo?
-Aquele do centro comercial?
-Sim, esse.
-Não tenho a certeza, mas acho que sim.
-E existem muitos cinemas da Lusomundo?
Aí, fez-se luz. Não resisti. Nada como praxar o aprendiz... Faz parte da formação, não é?
-O quê? - Perguntei eu para ganhar tempo.
-Existem muitos cinemas da Lusomundo? - Repetiu ele.
-Nem por isso, agora que me lembro.
-Então, quantos cinemas existem? - Perguntou ele inocentemente.
-Um. - Respondi eu erguendo o indicador no ar demoradamente torcendo-me por dentro para não me rir. Os olhos dele, muito abertos, evidenciam espanto e confusão.
-Um?... - Inquiriu ele incrédulo. - Só?... E onde é que fica?...
-Aqui na rua. - Rematei eu.
Vocês não conhecem a minha rua, mas garanto que achariam incrível se aqui existisse um cinema. É uma rua num bairro dormitório de trolhas. Uma rua sem uma loja ou café já que todos os espaços foram rentabilizados em garagens pelo construtor numa bela visão de pato bravo - empreiteiro conduzindo mercedes a gasóleo - oriundo de trolha, dando origem a pequenos apartamentos com acesso directo à rua. Apartamentos, sim. É impressionante como alguém compra ou aluga uma garagem e lá coloca mesas, fogões, televisões, sofás e as famosas arcas frigoríficas horizontais, daquelas que levam mais, transformando a suposta garagem na principal divisão da casa, casa essa que fica abandonada um dia inteiro ao deus dará - é que assim não se suja e sempre se poupam mais as coisas, e sempre se podem fazer uns assados ao fim de semana e tudo. - Assados ao fim de semana... É só o tempo deixar e lá vai o incansável fogareiro para a rua à porta de uma garagem escancarada, que tem de tudo lá dentro excepto um carro. Tem de tudo lá dentro, e a porta sempre aberta mostra isso mesmo, quadros de uma privacidade perdida, almoços, jantares, festas de aniversário, discussões, berreiro dos miúdos... E nesta correnteza de garagens, de carros estacionados à porta, sem uma loja sequer, claro que achariam incrível se aqui existisse um cinema.
-Aqui na rua? - Perguntou-me ele cada vez mais pasmado com tudo aquilo.
-Sim, aqui na rua. É na última garagem ali do lado esquerdo. Quando fazem sessões metem um cartaz cá fora e a sala dá para quatro pessoas... Cinemas Lusomundo, uma sala perto de si. Mais perto era difícil não era?
-Quatro pessoas? Só?...
-Não te preocupes que eu reservo quando for para nós irmos puto.
E nisto, não aguentando mais, desatei-me a rir numa gargalhada sonora. A sua expressão transformou-se. E o olhar esbugalhado de espanto com tudo aquilo, apercebendo-se da partida que lhe havia pregado pela sua inocência, tornou-se franzido com os olhos pequeninos de raiva a fitarem-me com a vergonha de ter sido alvo de chacota.
-Palhaço... - Disse ele a seco.
A minha mão voou instintivamente pela retaguarda da sua nuca espetando-lhe uma bordoada na mona.
-Então?... - Perguntei eu. - Já não se pode brincar?
O Aprendiz faz-se... Com tempo ele faz-se.